14.1.17

A consciência e o capricho

 
A consciência e o capricho
Nas discussões com os anglicanos da sua época, o Cardeal Newman costumava dizer que "se depois
de um almoço se visse obrigado a fazer um brinde não teria pejo nenhum em beber à saúde do Papa, mas reflectindo bem, levantaria o primeiro copo à consciência e o segundo ao Papa".
O purpurado inglês respondia assim à opinião tão difundida entre os não crentes ou entre os não
católicos que os que admitem o primado de Roma prestam culto unicamente à obediência, mas não
à consciência, que fazem unicamente o que os bispos ou os padres lhes dizem mas não ouvem a voz
interior do seu coração.
Parece-me muito importante reivindicar os direitos da consciência e recordar aqui que todas as religiões sublinharam o seu papel indiscutível. O velho Lin Yuntang escrevia que o sentido da misericórdia, o sentimento da dignidade, da cortesia, do justo e do injusto, estão na consciência de todos os homens. E entre os pagãos, Manandro recordava que "a consciência é a voz de Deus". E esta importância não declinou no mundo da fé cristã, que sempre susteve que nunca é permitido agir contra a própria consciência; e o próprio concílio de Latrão afirmou: "O que se faz contra a consciência, constrói-se para o inferno". Mas creio que se devem fazer alguns esclarecimentos. O próprio Newman, depois da afirmação com que abro esta página, acrescentava, "com medo de que o meu pensamento seja mal interpretado", que "quando falo de consciência, refiro-me àquela que realmente merece esse nome". Porque, na verdade, poucos termos há que se estiquem e adaptem tão bem ao uso do consumidor como este da consciência.

Com demasiada frequência ouve-se dizer: "ah, eu ajo segundo a minha consciência" e o que querem dizer é que fazem segundo a sua consciência, o seu capricho, as suas visões pessoais e talvez egoístas do assunto. Há quem chame consciência ao desejo de ser coerente consigo mesmo, há quem a confunda com a teimosia ou obstinação. Ou com o afã de levar a sua sempre por diante. A todas estas consciências aplica-se o que escrevia Dostoiewsky: "A consciência sem Deus é um erro que pode extraviar-se até cometer um poço de crimes". Efectivamente não faltam criminosos ou delinquentes que depositam toda a sua responsabilidade em "assim o pedia a consciência".
Para entender de que consciência falamos, cito de novo Newman: "A consciência é o vigário natural
de Cristo; poeta por suas instruções, monarca pelo seu absolutismo, sacerdote por suas bençãos e maldições, e inclusive se o sacerdócio eterno pudesse deixar de existir na Igreja, este princípio sacerdotal da consciência permaneceria e exerceria a sua soberania.  Mas que resta actualmente da noção de consciência no espírito do povo? Nem nele, nem no mundo intelectual a palavra consciência guardou o seu significado antigo, verdadeiro e católico. Hoje esta palavra é usada com frequência, mas já não evoca de maneira nenhuma a ideia e a presença de um mestre do mundo moral. Quando os homens invocam os  direitos de consciência, não querem de modo nenhum falar dos direitos do criador nem dos deveres das suas criaturas nos seus pensamentos e acções, mas do direito de pensar, de falar, de escrever e agir segundo a sua opinião ou humor, sem se preocuparem minimamente com Deus. É o direito da própria vontade".

Temo que o leitor me ache nesta página mais abstracto que habitualmente. Mas parece-me importante reflectir sobre esta questão que tanto se usa e abusa. É que obedecer à consciência não é fazer o que apetece por cima de toda a norma e de todo o valor.
 


A consciência não é mais que a voz de Deus que fala dentro de nós e nos empurra a sermos fiéis à
direcção da nossa vida. Por isso, a consciência é quase sempre uma voz exigente e que nos impele
para cima. Quando os ditames da minha consciência me dão razão naquilo que me agrada, tenho razões para pensar que não é a minha consciência que fala mas a minha conveniência.
A consciência em noventa e nove por cento dos casos é incómoda para quem a escuta, porque fala muito mais de deveres do que de direitos; porque exige mais do que acaricia; porque recorda constantemente que devemos caminhar e não ficar parados: porque é um vigia incómodo que cada dia espera mais de nós.

A consciência é outro homem que existe dentro de mim.  É testemunha, fiscal e juiz e não um adulador complacente. É o nosso aguilhão, graças ao qual não conseguimos dormir.
Merece bem que lhe levantemos a nossa primeira taça.

[José L. Martin Descalzo — Razões para viver]

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Salvé Regina!