20.9.16

Essência e caminho do ágape

 
 
O amor «sobrenatural» vem, como qualquer amor, dum sim que me é dado. Mas este sim provém agora dum tu maior que o sim humano. É o sim de Deus que penetra na minha vida mediante o sim de Jesus Cristo, proferido por nós na Sua encarnação, na Sua Cruz e na Sua ressurreição, por nós que estávamos afastados do sim de Deus. O «ágape» pressupõe, portanto, que o amor crucificado do Senhor se tenha tornado perceptível para mim, me tenha alcançado mediante a fé. Isto parece difícil no sentido humano-psicológico; aqui tocamos o famoso problema da  «actualização». Como pode a cruz do Senhor chegar da história a mim, de maneira a fazer-me experimentar aquilo que Pascal percebeu vivamente na sua meditação sobre o Senhor no Jardim das Oliveiras (esta gota se sangue verti-a por ti)? A «actualização» é possível porque o Senhor vive ainda hoje nos seus santos e porque através do amor proveniente através da fé deles pode atingir-me imediatamente.
 
Recordemos aqui o que foi dito no capítulo sobre a fé acerca do nosso caminho duma fé em «segunda mão» a uma fé em «primeira mão»: Em cada encontro com o amor dos «santos», daqueles que realmente crêem e amam, eu encontro sempre mais que este determinado homem, eu encontro o Novo que somente por meio do outro, por meio d'Ele, podia formar-se neles, e assim abre-se também em mim a via para a imediatez com Ele.
 
Mas isto é apenas o primeiro passo. Se este sim do Senhor penetra realmente em mim de modo a gerar de novo a minha alma, então o meu eu fica impregnado d'Ele, conotado pela participação n'Ele. «Já não sou eu que vivo, é Cristo que vive em mim.»
Então realiza-se o mistério do Corpo de Cristo, como por exemplo expôs São João de Eudes no seu tratado sobre o Coração de Jesus: «Peço-te que penses que Jesus é a tua verdadeira cabeça e que tu és um dos Seus membros. Ele é para ti o que a cabeça é para os seus membros; tudo o que é Seu é teu, espírito, coração, corpo, alma, todas as capacidades. Podes usá-las como sendo tuas (...). Mas tu és para Ele como um membro, pelo que Ele deseja intensamente empregar cada capacidade tua como sendo d´Ele...(...)
 
No encontro com Cristo instaura-se, como diria a teologia, «uma comunicação de idiomas», uma troca interna recíproca no grande Eu novo em que a transformação da fé me introduz. Então o outro deixa de ser um estrangeiro para mim, também ele é um membro. Cristo quer usar as minhas capacidades por ele, mesmo quando não está presente uma atracção humana-natural. Ora eu posso transferir para ele o sim de Cristo que me vivifica, como sim meu pessoal e contudo dele, mesmo e precisamente quando não existe simpatia natural. Em vez das simpatias e das antipatias pessoais privadas, entrou a simpatia de Cristo, o seu sofrer e amar connosco. Desta simpatia de Cristo a mim participada, que se torna minha na vida da fé, eu posso transmitir uma simpatia, um sim maior que o meu próprio sim, que faz sentir ao outro aquele profundo sim único que dá sentido e consistência a todo o sim humano.
 
Infelizmente não é possível aqui ver mais de perto a modalidade humana deste ágape. Ela exige iniciação, paciência e também a previsão das contínuas recaídas. Ela pressupõe que na vida da fé eu chegue ao intercâmbio interno do meu eu com Cristo, de modo que o Seu sim penetre realmente em mim e se torne meu. Ela pressupõe também exercício para a coragem concreta deste simm que vem d'Ele e passa para o outro, e pelo qual precisa de mim, pois somente com esta coragem, inicialmente não habitual e um pouco difícil, aumenta a força e se reconhece cada vez melhor o evento pascal. Esta cruz que me atravessa («Auto negação») conduz a uma alegria íntima, à «ressurreição». Quanto mais tiver a coragem de me perder a mim mesmo mais experimento que precisamente assim me encontro. Desse modo, mediante o encontro com Jesus, cresce para mim um novo realismo, que me reforça no meu agir como seu membro. Assim como existe um circulus vitiosus, um aprisionamento no negativo, quando um não condiciona outro e nos extravia cada vez mais, também existe um círculus salutis, um anel da salvação, em que um sim gera outro. Nesse caso é importante garantir a justa relação entre natureza e graça. Um ágape que não seja ao mesmo tempo trazido e afirmado pela minha própria «natureza», que queira rejeitar e combater o eu, torna-se bruto e inflexível. Ele assusta o outro e nutre a fractura íntima em mim próprio.
 
A exigência da cruz é totalmente diferente. Atinge maior profundidade, exige que eu ponha o meu eu nas mãos de Jesus, não para que o destrua, mas para que n'Ele se torne livre e aberto. O sim de Jesus Cristo que eu transmito só é realmente Seu quando se torna inteiramente meu. Assim, a esta via pertence muita paciência e humildade, tal como o Senhor tem paciência connosco. Não é o salto mortal para o heroísmo que torna santo o homem, mas o humilde e paciente caminho na companhia de Jesus, passo a passo. A santidade não consiste em aventureiros actos de virtude mas em amar com Ele. Por isso os verdadeiros santos são pessoas em tudo humanas e naturais, são aqueles em que o humano, mediante a transformação e a purificação pascais, vem à luz com toda a sua beleza original.
 
 
[Trechos — in: Olhar para Cristo — Papa Bento XVI]

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Salvé Regina!